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Refletindo sobre o aborto

“A menina que engravida cumpre um ritual

 

 “A menina que engravida cumpre um ritual, enquanto a que aborta fica com uma lacuna a preencher”. Dr. Albertina Albertina Duarte Takiuti é ginecologista e obstetra no Hospital das Clínicas (SP)e professora na faculdade de medicina da Universidade de São Paulo USP. ANDI – Atualmente, como se coloca a questão do aborto no Brasil? A discussão sobre o aborto está basicamente centrada na polêmica da legalização e da criminalidade. No entanto, acredito que este processo esteja muito mais associado a vítimas do que a crimes. Uma menina que aborta é vítima da falta de informação, da deficiência no atendimento médico, da solidão e da falta de diálogo na família. Ela não é necessariamente criminosa, mas vítima de um sistema.

 

Enquanto mulher, mãe e ginecologista, eu gostaria que as mulheres de meu país não precisassem abortar e, mais do que isto, não queria que nenhuma chegasse a morrer por aborto. As pessoas têm discutido muitos números sobre mulheres que abortam, mas fala-se pouco das que morrem durante o processo de abortamento. No Brasil, a cada 100 mil crianças que nascem dez mães morrem. É preciso maior capacitação dos médicos, pois os serviços nacionais não se mostram preparados para prevenir nem para atender estas pacientes. Quando a menina chega ao hospital em estado de hemorragia escuta logo a pergunta “Você provocou ou não?”. No entanto, ninguém pergunta como ela fica depois. Estas adolescentes voltam sozinhas para casa com medo de não poder engravidar novamente, com medo de ficar sozinha e de ter problemas de saúde. ANDI – Quais são os principais riscos do aborto? No caso de curetagens, a paciente pode ter as paredes do útero coladas, o que chamamos de sinéquias. É como se o útero estivesse fechado impedindo a menstruação e a gravidez. Também há o risco de obstrução das trompas, que ficariam fechadas impedindo igualmente o processo de gravidez. Se esta curetagem não for feita a tempo, a paciente pode necessitar de uma esterectomia, isto é, da retirada do útero para acabar com o foco da infecção.

A paciente aborta com muito medo. Ela tem medo de ter câncer, de perder a fertilidade, de ter corrimento, dentre outras preocupações. Qualquer sensação ou sinal diferente em seu corpo vai ser diretamente associado ao aborto. Perguntas como “Será que eu tenho esta feridinha porque eu abortei?” ou “E se eu tomar pílula, não vai agravar o meu estado?” são as mais comuns. A adolescente não entende bem o que aconteceu, principalmente se ela fez uma curetagem. É importante dizer que há muita culpa. Depois de 30 anos de trabalho, tenho atendido mulheres que fizeram aborto durante a adolescência e que hoje, na idade madura, têm medo de não engravidar e acham que perderam a fertilidade como forma de castigo. Mas em grande parte dos casos as cicatrizes não são físicas, mas psicológicas. ANDI – Como você definiria estas cicatrizes psicológicas? Existem muitas interrogações envolvendo a adolescente, que não tem espaço suficiente para falar sobre seus problemas. E o aborto acaba virando um tabu. Depois de feito, não se fala mais. É como se fosse um crime hediondo que não pudesse nem mesmo ser comentado. Depois de abortar, ela não pode contar para ninguém, nem para o parceiro seguinte. Há uma discriminação extremamente velada. Tenho pacientes que já fizeram abortos na adolescência e que me pedem para que eu não conte nada aos seus maridos. Então, a menina que aborta faz um movimento de muita clandestinidade. Na família, ela normalmente compartilha o assunto somente com a mãe. É por isso que, quando se fala em aborto, tem que se pensar no dia seguinte, pois este é um dos momentos mais complicados para uma garota. No dia seguinte ela quer saber quando vai menstruar novamente, quando vai poder voltar à escola e se vai ter problemas de saúde. Caso esta adolescente não tenha assistência psicológica, ela pode voltar a engravidar rapidamente. ANDI – Qual a maneira mais apropriada de se desenvolver esta assistência? A assistência psicológica não tem que ser dada apenas depois do aborto, mas desde o momento em que a paciente chega com hemorragia no hospital e, se possível, desde o momento em que ela fala sobre a vontade de abortar. E, nestas horas, apesar dos profissionais terem seus princípios e dogmas, não cabe a nenhum ser humano o papel de juiz ou censor. Diante de uma paciente que aborta, ao invés de exercer qualquer tipo julgamento, o médico deve oferecer o melhor de si para um tratamento eficiente e rápido. Esta mulher precisa ser respeitada e recebida com carinho. Apesar destes cuidados, a situação continua complicada para muitos profissionais. Acho incrível a cobrança que as pessoas me fazem vinte anos depois. Tenho pacientes que abortaram durante a adolescência e que hoje não lembram, de forma alguma, do momento em que optaram pelo aborto.

Outras me dizem que eu deveria ter sido mais dura e lutado contra. E ainda há aquelas que me agradecem por ter sido compreensiva na época em que decidiram abortar. Quanto ao período posterior ao abortamento, acredito que existem graves seqüelas psicológicas que não são trabalhadas. Para estas meninas, o maior problema não está no medo de engravidar novamente, mas no medo das conseqüências do aborto. É uma situação muito delicada, pois esta menina está tão atrapalhada que não consegue ver os riscos e, ainda, não encontra ninguém para compartilhar este momento. Muitas vezes o namorado não entende esta situação de dúvida. Ela quer chorar esta dor e ele quer passear. Escuto muito este tipo de frase: “Olha doutora, estou sofrendo e ninguém pensa na minha dor”. Então, é preciso saber que a paciente aborta com muito medo e muita culpa e cabe ao médico trabalhar sobre este aspecto. A ajuda psicológica é sobretudo, um trabalho no imaginário desta adolescente. Enquanto a gravidez tem um fruto vivo, o aborto é uma morte. E as meninas geralmente não realizam esta morte. ANDI – Como trabalhar a prevenção do aborto? Eu acho que a questão do aborto ainda não é discutida num plano maior de saúde da mulher. Fala-se muito em gravidez e anticoncepção, ao passo que o aborto fica de lado, ocupando um espaço restrito nos programas de prevenção. O que é preocupante, pois cada vez mais a questão do aborto precisa ser discutida de uma forma científica e competente. Hoje esta mulher precisa ser esclarecida e saber que a camisinha pode preveni-la de uma gravidez indesejada, de um abortamento, da Aids e das demais doenças sexualmente transmissíveis. Tem que haver uma conscientização neste sentido.

No Brasil, muitas adolescentes que foram autorizadas a se submeter a um aborto voltam a engravidar rapidamente, os dados comprovam: 40% das adolescentes que se tornam mães voltam a engravidar depois de três anos, ao passo que, no caso do aborto, se esta menina não tiver um acompanhamento, ela pode engravidar apenas seis meses após ter abortado (Fonte: Unicamp). ANDI – Quais as explicações para isto? A menina que engravida cumpre um ritual, enquanto a que aborta fica com uma lacuna a preencher. A paciente que passou pelo aborto quer testar a sua fertilidade e resgatar uma história de vida. Já a garota que leva a maternidade em frente realiza no concreto o bebê, existe um movimento em torno da situação que acaba sendo positivo, afinal é uma criança que nasce. Abortar ou perder o bebê é uma situação muito mais complicada, é como se a menina não cumprisse o funeral. Elas sempre perguntam “Era menino ou menina? A senhora viu doutora, conte pra mim”. Outro fator importante é a dificuldade de anticoncepção para a menina que aborta. Existe medo em relação à pílula e ao DIU, ela pensa que os contraceptivos podem afetar sua saúde. A camisinha é o único método que não apresenta problemas para estas meninas, pois seu uso cabe ao parceiro. Mesmo assim, em muito dos casos, estas meninas ficam tão fragilizadas que não conseguem exigir os cuidados ao namorado. O pior disto tudo é que não há ninguém para que ela esclareça suas dúvidas. De alguma forma, a mulher que engravida tem um atendimento durante e depois da gestação, enquanto a que aborta fica marginalizada, não entende o que está acontecendo, não assimila a perda e vive este processo tão delicado sem receber nenhuma assitência. Esta pessoa fica mais tumultuada, mais fragilizada e menos acompanhada. ANDI – Quais as estratégias para fazer do aborto uma prática menos controversa? Em relação aos adolescentes, presenciei uma experiência interessante. Participei de uma pesquisa, realizada com 2300 adolescentes pela Organização Mundial de Saúde, onde a maioria das jovens que abortaram disse ser contra o aborto, além de não o desejarem para nenhuma amiga ou irmã. Apenas 14% se declararam a favor.

Há uma grande ambigüidade, é a história do “Posso fazer, mas não aceito”. Na verdade, mesmo nos países onde o aborto é legalizado as jovens têm medo, porque estas meninas necessitam do consentimento dos pais para interromper a gravidez. Existem pressões de todos os lados: da família, dos amigos, da religião e da sociedade. O movimento de mulheres e as diversas religiões se dividem na questão do aborto e acho que esta é uma decisão de fórum íntimo das pessoas. No entanto, a legislação precisa ser discutida com mais profundidade. Hoje existe uma legalização pelo dinheiro: “quem tem dinheiro, tem acesso”. Mas existe uma questão a nível moral das pessoas, principalmente em relação aos adolescentes. e-mail: albertinad@uol.com.br

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