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A velha e a nova ética médica

Sumário: O autor relaciona a ética médica de antes com a atual e aponta as diversas causas que levaram às mudanças verificadas, assim como suas conseqüências. Aponta também algumas situações que advirão no futuro em torno do exercício

duma medicina preditiva. Palavras chave: A ética médica no contexto atual. A moral médica de hoje e de ontem. Dimensões ético-políticas da medicina de amanhã. A ética hipocrática A Medicina permaneceu por longo tempo no chamado período hipocrático, prisioneira dos rigores da tradição e das influências religiosas. Tal postura respondia a um modelo calcado no corpus hipocraticum, constituído de um elenco de normas morais imposto pelos mestres de Cós. A virtude e a prudência eram as vigas mestras desta escola. Estes postulados, é claro, colocavam o médico muito mais perto da cortesia e da caridade que de um profissional que enfrenta no seu dia a dia uma avalanche medonha de situações muito complexas e desafiadoras. Nesta época prevalecia o princípio de que antes de tudo se deveria provar que o médico era um bom homem. A ética do médico sempre foi inspirada na teoria das virtudes, base de todo corpo hipocrático, realçado de forma bem especial no Juramento. A prudência era a virtude mais exaltada.

Antes, como a doença era colocada em nível de castigo, era comum se perguntar se cabia aos médios se opor a tais desígnios. Hipócrates fez esta separação: “Proponho tratar a enfermidade chamada sagrada – a epilepsia. Em minha opinião não é mais sagrada que outras doenças, senão que obedece a uma causa natural, e sua suposta origem divina está radicada na ignorância dos homens e no assombro que produz peculiar caráter”, dizia ele em tom grave e solene. O Gênio de Cós conduzia a medicina dentro de um alto conceito ético. O diagnóstico deixava de ser uma inspiração divina para constituir um juízo sereno e um processo lógico, dependendo da observação cuidadosa dos sinais e sintomas. Era a morte da medicina mágica e o nascimento da medicina clínica. Foi em Juramento que a doutrina hipocrática logrou maior relevo e maior transcendência.

Mesmo não se assentando em fundamentos jurídicos seu postulado ético-moral continua sendo lembrado pelo seu conteúdo dogmático que faz da medicina merecedora do aplauso e da consagração que o tempo não conseguiu destruir. É neste instante de tantas conquista e de tantas mudanças que sempre se invoca o sentimento moralizador e purificador do Mestre, sintetizado na sua lapidar sentença: “Conservarei puras minha vida e minha arte”. Na verdade, somente a partir do século XV é que surgiu uma idéia mais precisa de uma deontologia (deveres e obrigações) médica orientada no sentido coletivo e social, sem no entanto se desvincular da fonte hipocrática. Somente no século passado este sistema começou a entrar em crise, principalmente quando se intensificaram as demandas judiciais contra os médicos e instituições de saúde. A ética médica de hoje A medicina vem enfrentando situações novas que as fórmulas tradicionais nem sempre lhe proporcionam a segurança de uma tomada de posição consentânea. Os aspectos da moral médica no cotidiano e a responsabilidade do médico ante o indivíduo e a sociedade estruturam-se de acordo com uma necessidade que está em constante evolução. A medida que a medicina avança em suas conquistas e investigações, maior se torna o risco desse desenvolvimento. Longe de se diluir ou atenuar a significação da Ética, faz-se ela doravante mais mister do que nunca. A ética do médico, principalmente nestes últimos trinta anos, vem assumindo dimensões políticas, sociais e econômicas bem distintas das de antigamente.

Muitos acreditam que os movimentos sociais tiveram certa influência nesta mudança, quando encaparam algumas posições em favor do aborto, da eutanásia e da reprodução assistida. Presume-se que a partir da metade do século passado a profissão médica começou a perder os vínculos com a ética clássica e seu “paternalismo” foi perdendo força, pois sua autonomia cedia espaço para outras profissões da área da saúde. Neste instante houve uma corrida no sentido de estabelecer espaços demarcados, para alguns, como uma forma de proteção corporativa. Uma parcela da sociedade já entende que a maior desgraça de um paciente é cair nas mãos de um médico inepto, e que de nada lhe serviram a compaixão, o afeto e a tolerância sem o lastro científico. O primeiro dever do médico para essas pessoas seria a habilidade e a atualização dos seus conhecimentos junto aos avanços de sua ciência.

Todavia, é elementar que a medicina não pode se resumir a simples condição técnica, apesar dos excelentes e vertiginosos triunfos, pois é em verdade uma atividade inspirada em valores ditados por uma tradição que, embora distante, conserva-se na mente de todo médico. Nos anos 80 do século passado foi-se vendo que a relação médico-paciente-sociedade deveria se fazer através de princípios, e onde cada caso deveria ser tratado de forma própria. A partir daí o discurso médico tradicional sofreu uma mudança bem significativa e foi se transformando pouco a pouco premido pelas exigências do conjunto da sociedade, com acentuada conotação econômica e social. Assim, a ética médica contemporânea vai se ajustando pouco a pouco às ansias da sociedade e não responde tanto às imposições da moralidade histórica da medicina. Tem mais significação nos dilemas e nos reclamos de uma moralidade fora de sua tradição.

A ética fundada na moralidade interna passa a ter um sentido secundário. Por isso, o grande desafio atual é estabelecer um padrão de relação que concilie a teoria e a prática, tendo em vista que os princípios ético-morais do médico são muito abstratos e as necessidades mais prementes dos seres humanos são prementes e práticas. O ideal seria conciliar sua reflexão filosófica com as exigências emergentes do dia-a-dia. O conceito que se passa a ter de ética na hora atual, portanto, tem um sentido de se adaptar a um modelo de profissionalização que vai sendo ditado por outras pessoas não médicas. Este novo conceito de ética no contexto de cuidado médico vai se aproximando de um outro modelo de ética, onde a preocupação por problemas morais complementam-se fora da medicina. O rumo da ética do médico será ajustar e supervisionar o ato profissional dentro de um espaço delimitado pelos valores sociais e culturais que a sociedade admite e necessita.

Daí, a pergunta: como conviver com a realidade diária da medicina e a reflexão filosófica que se tem de uma perspectiva teórica de ética médica? O primeiro passo é analisar os diversos contextos onde se exerce a prática médica a partir de uma compreensão da moralidade interna da profissão. Estas normas internas não devem ser desvalorizadas, mas avaliadas caso a caso. O segundo passo é interpretar a reações que surgem da moralidade externa, tendo como referência os valores, atitudes e comportamento da própria comunidade frente a cada projeto colocado em favor da vida e da saúde das pessoas. Entre estes valores estão a doença, a invalidez, o morrer com dignidade e a garantia dos níveis de saúde. De 1970 a 1980 houve uma grande modificação no sentido de entender a ética do médico dentro do conjunto das necessidades da profissão e das exigências contemporâneas. Surgiu a ética dos princípios trazida pelos bioeticistas, oriundos de outras tantas atividades não-médicas. É claro que houve um sobressalto medonho entre os estudiosos da deontologia médica clássica. Tudo começou quando o conhecimento médico foi invadido por uma enorme avalanche de dilemas éticos e morais advindos da biotecnologia.

Era difícil não aceitar os formidáveis acenos das técnicas modernas capazes de favorecer o transplante de órgãos, a reprodução assistida e a terapia gênica. Por outro lado a sociedade tornava-se mais e mais permissiva a certos modelos que se incorporavam aos seus costumes e necessidades. O fato é que os filósofos antigos que tinham tomado a medicina como exemplo prático da moral e que tiveram reduzidas suas influências pelo juízo hipocrático, voltaram triunfantes com o advento da Bioética, batizada em 1972 e tantas vezes sacramentada na hora atual. Daí em diante as salas de aula dos filósofos e moralistas passaram a ser ocupadas por temas como anencefalia, pacientes terminais e transplantes de órgãos. Disso resultou se perguntar: o que exatamente têm os bioeticistas a oferecer em tais contextos? Muitos acham que eles podem trazer para o centro destas discussões uma reflexão mais neutra sobre os problemas enfrentados num hospital ou clínica médica.

Mas seria certo dizer que de uma discussão em matéria filosófica sempre surge resultados valiosos em situações práticas da medicina? Passados os primeiros instantes de euforia e de perplexão – quando os filósofos e moralistas incursionaram livremente pelas questões da ética profissional dos médicos, sob o manto desta nova ordem chamada Bioética -, acredita-se ter chegado a hora de se analisar e refletir sobre alguns dos aspectos oriundos desta experiência. Antes de tudo é bom que se diga que não temos nada contra alguém que fale sobre temas ligados à vida e à saúde, principalmente quando se sabe que as teorias dos filósofos da moral podem exaltar os valores que vivem no mundo interior de cada médico, porque o filósofo “pensa e age de acordo com o ser dos homens”. Porém, é preciso entender como eles poderiam influenciar na forma de decidir quando diante de dramáticas situações, notadamente numa profissão de regras tão técnicas e racionais, onde se “age e se pensa de acordo com o ser das coisas”.

E mais: é da essência do filósofo criar mais problemas que soluções. A partir dos anos setenta a ética médica tradicional foi influenciada pela chamada teoria de princípios, onde se preconizava a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a equidade, sempre se baseando no raciocínio de que se um ato tem conseqüência boa e está ajustado a uma regra, ele é por conseqüência um ato eticamente recomendável. De início, esta proposta foi discretamente aceita em virtude de não existir, à primeira vista, algo que se conflitasse com as teses deontológicas da velha teoria das virtudes. No entanto, esta teoria foi demonstrando na prática que não era suficiente para responder a muitas indagações de ordem mais pragmática, as quais exigiam respostas iminentes como, por exemplo, o aborto, a eutanásia e o descarte de embriões congelados, assuntos esses que os “principialistas” divergem abertamente. A maior falha deste sistema é a não fixação de uma hierarquia em seus princípios. Isto, justiça se faça, não quer dizer que a Bioética deixe de ser um espaço a mais para uma ampla e participativa discussão sobre temas em torno das condições de vida e do meio ambiente. Esta doutrina hoje tem muitos adeptos face o prestígio e a mobilização dos iniciados na Bioética, os quais vem passando aos mais jovens seus conceitos como proposta de solução para os problemas éticos do dia a dia.

Todavia, seus defensores, conhecendo as limitações dessas idéias, principalmente pela inexistência de uma base moral mais convincente, começam a defender a justificativa de que “não há princípios morais inflexíveis e que cada um deve condicionar sua postura de acordo com as nuanças de cada caso em particular”. Hoje, pode-se dizer que iniciamos um novo período, chamado de antiprincipialista, e a justificativa moral é de que aqueles princípios se conflitam entre si, criando-se uma disputa acirrada pela hierarquia deles. Diz-se, entre outros, que aqueles princípios são insuficientes para satisfazer as necessidades dos dias de hoje e para trazer respostas aos desafios do exercício da medicina atual. Outros afirmam ainda que esses princípios são por demais abstratos e distantes das situações que se apresentam na prática do dia-a-dia do médico. Quando os principialistas discutem entre si, tem-se a impressão que os caminhos da ética são muitos e são diferentes. Este novo período, então, passa a ser o da qualidade moral, do cuidado solícito e da casuística. A ética da qualidade moral não se preocupa tanto do tema do “bom” e sim na resposta à pergunta: “que tipo de pessoa gostaria de ser?” (A resposta seria: “competente”, “fiel”, “alegre”, …, que corresponde a uma virtude).

A ética do cuidado solícito estaria sujeita a uma pauta confiável de tomada de decisões morais específicas. A ética casuística seria uma posição tomada a partir de casos concretos e singulares, capazes de serem usados como exemplo de consenso. Este conjunto de idéias, representante deste terceiro período, não se conflita com os princípios, mas apenas não aceita a sua absolutização. Na verdade, o grande risco no futuro é que as profissões da saúde afastem-se de seu modelo de ciência e arte a serviço da vida individual e coletiva e passe a manipular substancialmente o homem. O progresso assombroso das ciências genéticas, por exemplo, cria essa possibilidade quando se procura selecionar o tipo de homem que desejamos. O eugenismo moderno já existe se não como uma ideologia coletiva, mas como legitimação de um eugenismo familiar quando se apregoa, por exemplo, o aborto dito eugenésico. O próximo passo O próximo passo será refletir sobre situações teóricas de uma medicina que apenas se projeta de forma conjetural, que não existe mas é certa. A medicina preditiva é uma destas formas de medicina. Ela se caracteriza por práticas cuja proposta é antever o surgimento de doenças como seqüência de uma predisposição individual, tendo como meta a recomendação da melhor forma de preveni-las ou remediá-las.

Por tal projeto, como se vê, muitas são as questões levantadas, tanto pela forma anômala de sua relação médico-paciente, como pela oportunidade de revelar situações que podem comprometer a vida privada do individuo ou submetê-lo a uma série de constrangimentos e discriminações, muitos deles incontornáveis e inaceitáveis. Desta forma, um dos grandes desafios do futuro será a capacidade de se conhecer, através do modelo preditivo, certas informações advindas da seqüência do genoma onde a capacidade de prevenir, tratar e curar doenças poderá se transformar numa proposta de discriminar pessoas portadoras de certas doenças ou debilidades. Se estas oportunidades diagnósticas forem no sentido de beneficiar o indivíduo, não há o que censurar. No entanto, estas medidas preditivas podem ser no sentido de excluir ou selecionar qualidades por meio de dados históricos e familiares, como nos interesses das companhias de seguro, e isto pode ter um impacto negativo na vida e nos interesses das pessoas. Não seria nenhum exagero se amanhã não se venha criar uma legislação onde se proíba a invasão do código genético com o fim de discriminar o indivíduo, deixando-o assim sem nenhuma garantia no que diz respeito a sua constituição genética. Hoje já se sabe que a presença de um determinado alelo ligado à doença de Alzheimer tem uma probabilidade maior de desenvolver este mal e que logo mais se terá informações sobre determinados fatores genéticos responsáveis pelas doenças psiquiátricas.

Isto, com certeza terá um impacto médico da maior significação a partir das possibilidades de tratamento e cura. Por outro lado, também poderá trazer conseqüências muito sérias capazes de promover implicações de ordem psíquicas, sociais e éticas. O mais grave nisto tudo é que as enfermidades ditas poligenéticas ou multifatoriais podem ou não se desenvolver, ficando o indivíduo discriminado apenas pela ameaça de risco que ele corre de contraí-las. O primeiro risco que corremos é o de natureza científica pois não temos ainda o conhecimento bastante para determinadas posições de natureza genética, o que pode redundar em medidas precipitadas que no mínimo trarão ainda mais discriminação, mesmo que isso não passe de um fator de risco. Outro fato é que existe um conjunto de doenças que poderão ser diagnosticadas num futuro bem próximo, todavia não se contará tão cedo com soluções exatas e eficazes, principalmente no que concerne a um sistema público de saúde. Muitas serão as oportunidades em que o único tratamento será à base de medidas eugênicas através do aborto. Some-se a isso a possibilidade do conhecimento preditivo de doenças graves e sem tratamento criar no indivíduo condições para as perturbações de ordem psíquicas ou fazer com que ele tome medidas radicais como, por exemplo, a de não ter filhos, desagregar a família e sofrer prejuízos econômicos. Isto não quer dizer, é claro, que se deva abrir mão dos meios que impulsionem a medicina preditiva, mas que se busque mecanismos que diminuam seus efeitos negativos e discriminatórios.

Fica evidente que, mesmo existindo um futuro promissor advindo destas conquistas, se ria injusto não se apontar relevantes conflitos de interesses os mais variados que poderiam comprometer os direitos humanos fundamentais. É preciso que se encontre um modelo racional onde as coisas se equilibrem: de um lado o interesse da ciência e de outro o respeito à dignidade humana. Por fim, é sabido que num estado democrático de direito não existe nenhuma prerrogativa individual que possa ter proteção absoluta, principalmente quando se admite também a proteção dos direitos fundamentais de terceiros. Isto, quando reconhecido, impõe limites ao princípio da autonomia. Assim, por exemplo, quando a vida e a saúde de terceiros estão seriamente ameaçadas pela negativa de informações individuais, a quebra do direito da intimidade justifica-se baseada no princípio do estado de necessidade de terceiros. Este dever de solidariedade pública estaria justificado quando diante de uma situação excepcional e justificada. Sempre que houver um conflito entre um interesse publico e um interesse privado deve-se agir com prudência e ponderação, tendo em conta sempre a possibilidade do uso de medidas menos graves. Deve-se entender, portanto, que existe limites na intromissão da intimidade individual.

Conclusões A verdade é que o médico vem se estruturando dentro de certas situações difíceis onde os princípios mais tradicionais nem sempre lhe asseguram a certeza de uma correta tomada de posição. Vão se estruturando de acordo com uma necessidade que sempre está em franca evolução. Mesmo que ele disponha de sua própria consciência, sob a inspiração de uma tradição milenar, não pode ele ficar indiferente a tudo isto que se verifica em seu redor. Tem-se a impressão que a ciência e a arte começam a fugir do seu domínio, num verdadeiro conflito de obrigações e deveres. Enfim, não se sabe o que será possível realizar a medicina com seus poderosos computadores quase infalíveis. Não se pode imaginar o destino da arte médica nesses anos vindouros em matéria de sofisticação e recursos. Sabe-se apenas que já se iniciou a era dos grandes conflitos, desafiadores e terrivelmente confusos, a abrir veredas sombrias e duvidosas e que há um frenesi e uma ansiedade neste exato momento de tumultuosas mudanças.

Genival Veloso de França

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